Entrevista a Rui Vargas, DJ e radialista, realizada a 13 de novembro de 2018.
“Divulgar música é a minha bênção”
Melómano, divulgador e apaixonado pelo vinil. São os traços da identidade de um dos maiores
embaixadores da música de dança no nosso país. Na cabine ou no estúdio, sempre mostrou um
denominador comum – o prazer da partilha – motivação que fez Rui Vargas desistir de uma
carreira de engenheiro para, em 1987,se fazer homem da rádio e DJ. Foi atrás do microfone que
venceu a timidez e foi na pista do Frágil, no Bairro Alto, que, “por brincadeira”, começou a passar
os primeiros discos. Uma brincadeira que se tornou um caso sério.
Aos 52 anos, Rui continua a achar que “o poder da música ainda continua intacto” e a acreditar
que a pista ainda é um bom local para desafiar as pessoas. É isso que faz no Lux-Frágil há duas
décadas, onde é DJ residente e programador musical. Na rádio é locutor do programa “Música
Com Pés e Cabeça” da Antena 3 há oito anos e continuará a ser enquanto lhe derem “um
microfone e uma antena”. Conciliar os seus dois grandes prazeres não lhe deixa muito espaço
livre na agenda, mas foi num desses escassos intervalos que conversámos com Rui Vargas, em
Campo de Ourique, localidade onde cresceu e onde vive até aos dias de hoje.
A jornalista Leonor Pinhão disse num artigo para o Público, em 1992, que “a vida em Lisboa
era mais difícil antes do Frágil”. A sua vida era mais difícil também?
Eu apanhei o Frágil, ele já ia embalado. Diria que a primeira vez que entrei no Frágil tinha ele
cinco anos. Eu que tinha começado a sair há pouco tempo, a ir ao Bairro Alto. Difícil, difícil era
entrar no Frágil, isso sim.
Lembra-se da primeira vez que entrou no Frágil?
Não tenho exatamente presente a primeira vez. Lembro me perfeitamente de ter sido recusado
a entrar várias vezes. De ter tentado e não conseguir porque não era “cliente habitual”. A
primeira vez que entrei foi pela mão do meu amigo Zé Pedro Moura, meu colega no Lux, que já
estava lá a pôr música e eu fui para ir ter com ele, para lhe levar uns discos. Mais tarde comecei
a tocar uns discos com ele. Mas a primeira vez foi com essa cunha, na porta. Foi importante para
entrar, para conhecer. Depois comecei a pôr música passado pouco tempo. E foi por brincadeira
durante muitos anos que pus música à noite. Mesmo quando fiquei residente, em 1988.
Encarava aquilo com uma leveza e um descomprometimento grandes.
O Lux-Frágil é um cruzamento de culturas ou é a voz de Lisboa?
Não poderia nunca dizer isso. O desafio sempre foi criarmos um sítio de fruição cultural, de
várias áreas. Onde várias áreas se cruzam, várias disciplinas convivem para criar um objeto onde
a fruição cultural é o principal objetivo, seja ele visual, musical ou estético.
A estética é importante para o sucesso do Lux-Frágil?
É fundamental. O sucesso do Lux ao longo dos anos é a soma de muitas coisas a esse nível. A
localização, o edifício, a forma como o edifício foi tomado. Era um edifício do princípio do século
XX que foi adaptado para ser um clube de exigência estética. Das decorações aos vídeos, da luz
ao som, da música à programação. O objetivo inicial era essa fruição cultural, que provocasse a
mentalidade das pessoas numa Lisboa muito diferente, mais fechada, mais provinciana e
conservadora. Fomos fazendo crescer um laboratório de várias ideias criativas de várias áreas,
sempre com uma porta bastante democrática, ao contrário do que as pessoas dizem. É
democrática porque a seleção é feita não pela indumentaria, status social ou pelas idades, mas
por uma atitude que as pessoas mostram na entrada.
As pessoas não entendem isso?
Não entendem e acham que é uma porta elitista, racista ou xenófoba ou o que quer que seja.
Quando não encontram grandes argumentos são estas as farpas que mandam. Mas é a atitude
com que se chega à porta e sabendo, ou não, o que vão encontrar lá dentro que muitas vezes
se faz essa seleção. Não queremos agradar a toda a gente naturalmente, temos a nossa forma
de ver as coisas, e todos são bem-vindos. Todos os que quiserem participar e fazer parte da
coisa.
Quando começou o interesse pela música?
Começou muito cedo, na pré-adolescência. Foi uma coisa muito minha. Os meus pais não tinham
assim grande coleção de discos. O meu irmão ouvia muita música, mas uma música que eu não
gostava. Ouvia muito Genesis, Pink Floyd, Queen, grandes bandas da altura, mas com as quais
não me identificava. Mas foi numa fase em que ele mudou um pouco de gosto, quando surgiu a
new wave, a seguir ao punk. Começou a ouvir rádio e eu também comecei a ouvir por influência
dele. E depois fiquei eu agarrado ao transístor e ao rádio. E ele começou a namorar com certeza.
Era um autodidata.
E ainda sou. E durante muitos anos, um autodidata completamente isolado. Não convivia e não
tinha muitos amigos com quem partilhar as minhas experiências musicais. Isso aconteceu muito
mais tarde, por volta dos meus 17 ou 18 anos, com um grupo de amigos aqui de Campo de
Ourique, que eram muitos deles melómanos e que me fez perceber que não estava sozinho no
universo.
A fase da solidão foi importante?
Completamente. Fazia programas fechado no meu quarto sem mesa de mistura nem nada,
apenas com um gravador que gravava a os discos e a minha voz. E fazia programas assim, tinha
os meus doze ou treze anos. Brincava à rádio. Mas sinceramente nunca esperei tornar-me
profissional de rádio, era um sonho sim, porque era um puto muito tímido e pouco falador. Não
tinha muito a vontade a falar em publico com as pessoas. Mas lá está a rádio tem essa vantagem
de estar fechado, protegido do olhar das pessoas, para mim foi uma vantagem e foi aí que
consegui resolver muito da minha timidez e das minhas inseguranças a falar ao microfone e a
fazer terapia, sozinho.
Houve algum disco que o fez mudar o chip?
Há um disco, que terá sido dos primeiros discos de house que eu ouvi. Estávamos em 1988 e na
altura, gravaram-me um programa de rádio da Kiss Fm, uma estação de Londres, do Jazzy B, o
líder dos Soul to Soul, uma banda com muito sucesso na altura. Esse programa era muito
transversal em termos musicais, passavam soul, passavam hip-hop e passaram para lá um disco
que eu viria a saber depois que era um disco de house. Aquilo bateu-me, porque na altura era
uma coisa muito estranha. Era o The Jungle, do Marshall Jefferson. Lembro-me que algo
monocórdico, repetitivo, com uma caixa de ritmos e poucos instrumentos, acompanhados de
uma voz misteriosa. Foi um disco que me soou muito diferente daquilo tudo que eu ouvia.
Lembro-me da primeira vez que ouvi a Laurie Anderson – O Superman, por volta de 1982, no
“Som da Frente” do António Sérgio. Era um disco muito estranho. Também feito
eletronicamente todo ele. Usava muito o vocoder, que era um instrumento na altura
completamente novo e que me causou uma estranheza absoluta. Parecia uma música que tinha
vindo de outro planeta.
O António Sérgio.
Foi o meu mentor à distância primeiro, depois conheci-o e inclusivamente trabalhámos juntos.
Passei a minha adolescência a ser cultivado, e o meu gosto cultivado e a minha vontade de
descobrir musicas novas e diferentes daquilo que se ouvia – era o slogan dele “O direito a
diferença” – e foi esse ADN que ele passou a mim, as pessoas da minha geração, das gerações
anteriores e posteriores também. Foi uma figura marcante na educação musical deste país
durante muitos anos, durante 3 décadas.
Foi ele que cultivou o “bichinho” da rádio?
Sem dúvida. Foi o principal. Houve outros. Não começou por ele. Eu cheguei ao António Sérgio
uns anos mais tarde. Eu ouvia rádio durante o dia e o Sérgio fazia maioritariamente programas
à noite e de madrugada. Lembro-me de ouvir “O Rock em Stock”, no final dos anos 70, o
“Discoteca”, que era mais de disco, música de dança e funk. Mas nada nem ninguém me formou
tanto como o Sério e os seus programas.
Quando começou a fazer rádio?
Comecei em 1987, a fazer rádio na Rádio Universidade Tejo. Era uma rádio pirata que transmitia
para a Grande Lisboa. Foi quase na mesma altura em que comecei a pôr música. A minha entrada
na RUT foi algo curiosa. Havia um programa onde fazíamos DJ battles, na altura ainda não tinha
essa definição, era um passatempo no fundo. Cada concorrente levava 5 discos, e eu como
passava muito tempo a ouvir rádio ganhava muitos concursos radiofónicos, bilhetes para
concertos, discos, já tinha alguma cultura musical. Eu estava a estudar na altura no Instituto
Superior Técnico, que era onde era a rádio, e concorri a esse programa. Ganhei essa batalha de
DJs, e fiz para aí 5 semanas seguidas a ganhar. Lembro-me de que o prémio era umas calças de
ganga old chap. Ao fim da quinta semana convidaram-me para ter um programa lá. E foi assim
que comecei como colaborador de um programa que tinha realizadores diferentes todos os dias,
que se chamava “Expresso Avalanche”, um programa da tarde da RUT.
E depois da RUT?
Depois passado um ano fui fazer testes para uma rádio profissional, a Correio da Manhã rádio,
isto já em 1989, depois passei pela Rádio Comercial, depois pela Vox durante uns três anos. Esse
foi o período mais intenso que eu tive de rádio porque fazia um programa diário de 3 horas, com
música minha, ao final da tarde. Da 6 as 9. Foi quando senti um maior feedback, um impacto.
Em Lisboa e sobretudo no Porto. Era uma rádio muito ouvida e com culto. O programa chamavase “Casa Bateria Baixo” e o fato de estar todos os dias em contacto com o auditório no primetime, a hora em que as pessoas estavam a pegar no carro para ir para casa, elevava a fasquia. O
slogan do programa era “Do stress da cidade ao aconchego do lar” e o programa era assim.
Começava assim mais agitado e ia decaindo até hora de chegar a casa. Depois da Vox fui para a
Oxigénio. Da Oxigénio fui para a Antena 3, onde estou até hoje. Estou lá há oito ou nove anos, a
fazer o “Música com Pés e Cabeça”.
Fazer rádio hoje e há 30 anos é a mesma coisa?
Não é bem a mesma coisa. Ainda há pouco tempo fiz um programa em direto, e adorei fazer
aquilo, foi um programa feito no Lisboa Eletrónica, no estúdio móvel da Antena 3 e gostei
imenso, tinha algumas saudades. Porque na Vox era isso, estava lá sempre a horas e
religiosamente aquilo era para cumprir em direto, sem qualquer rede. Agora a rádio mudou
muito, grande parte da rádio é feita com pré-gravações e com computadores a gerir as playlists.
A Antena 3 ainda é dos poucos redutos em que a esmagadora maioria dos programas é feito em
direto, como eu acho que deve ser.
Aquilo que faz na rádio tem o intuito de educar ou entreter?
Sou mais ambicioso em procurar. O educar pode ter uma conotação arrogante. Tenho outro
conforto para desafiar pessoas para novas coisas e sem a pressão de as fazer dançar. Posso tocar
coisas mais calmas, coisas com diâmetros mais estranhos e esquisitos. Sem grandes taboos em
termos musicais, dá-me mais liberdade. Continua a ser algo que prezo muito e espero continuar
a fazer enquanto me derem um microfone e uma antena. Para mim, continua a ser um veículo
genial para fazer divulgação de música e estabelecer cumplicidades com as pessoas. Acho que
não é nem educar nem entreter. Não encaro a rádio, pelo menos como os programas de autor,
como apenas um entretém, para fazer passar o tempo. Mas isso é a forma como eu faço os meus
programas. Há rádio que é entretenimento puro. Mas não é a rádio que eu gosto de fazer.
Quando começou a ser DJ, a noite era um complemento do seu trabalho na rádio?
Era um complemento, era para estar com os amigos. A rádio é um processo muito solitário, a
forma como trabalhas. É quase um exercício de imaginação que tens o público à tua volta, ou à
tua escuta. É o contraste perfeito da noite. Está nos antípodes uma coisa da outra. Estás fechado
num estúdio às escuras, na penumbra. E imaginas que tens alguém a ouvir no outro lado. Na
cabine era diferente. Eu comecei a pôr música, em primeiro lugar para ouvir discos a volumes
altos, que muitas vezes não o podia fazer em casa. Estar com amigos e fazê-lo, disfrutando a
música e partilhando-a com os outros, como nós fazíamos em casa do meu núcleo de amigos,
mas assim a uma escala maior, não muito grande, pois o Frágil era um bar que levava 200 a 300
pessoas.
Como é que a sua família reagiu a esse amor pela música e pela noite?
Com a música foi uma reação até saudável, porque estava no meu canto sossegado sem armar
grandes confusões. Quando comecei a sair a noite, houve alguma desconfiança sobretudo
quando comecei a patinar na faculdade. Estava no meu segundo ano de faculdade quando
comecei a trabalhar à noite e a fazer rádio também, foi um período mais complexo. Tive de dizer
aos meus pais que era aquilo que queria fazer em detrimento de um curso de engenharia
mecânica, no Técnico. Mas foi relativamente pacifico, não houve grandes dramas. Hoje em dia
percebem que eu tomei a melhor decisão e eu também não me arrependo nada de ter deixado
a engenharia para abraçar os discos.
A “Dar e Receber” do António Variações reflete a sua identidade enquanto DJ?
Em absoluto. É isso que está na génese do meu trabalho e, penso eu, de qualquer DJ. Não me
interessam DJs que chegam a um palco ou a uma cabine e que estejam apenas a fazer um
exercício de virtuosismo, fechados sobre si mesmo, sem estarem a interagir e a tentar perceber
aquilo que o público quer e vice-versa.
É Importante estudar o público?
Muito do trabalho de DJ tem essa parte de estabelecer uma comunicação com as pessoas. Eu
tenho, algumas vezes no meu dia a dia, dificuldade em estabelecer comunicação com as
pessoas, mas consegui encontrar forma de me expressar através dos discos, através da música.
Apesar de não saber tocar instrumento nenhum, eu divulgo música. E divulgar música é a minha
bênção. Mas é fundamental para aquilo que eu faço, aquilo que eu vejo que um DJ deve ser.
Tentar expressar-se e tentar levar as pessoas nessa viagem através de fazer passar várias
emoções, energias. Conseguir fazê-lo através de uma forma personalizada naturalmente e
através dos discos de outras pessoas.
As pessoas quando estão na pista são mais frágeis e isso torna o seu trabalho mais fácil?
Acho que ficam saudavelmente com as defesas mais em baixo. E quando assim é podem surgir
muitas coisas, amizades, paixões. Surge com certeza uma maior dose de generosidade, ou pelo
menos idealmente, de tolerância, de sã convivência, onde as máscaras caem mais facilmente.
A pista de dança ainda é um bom sítio para mudar mentalidades?
Eu continuo a achar que o poder da música ainda continua intacto, apesar de os tempos terem
mudado muito. Quando eu comecei a pôr música, nós comprávamos discos que eram raros de
encontrar aqui em Lisboa, íamos a lojas de importação, que só havia umas duas ou três aqui.
Sabíamos que à terça chegava música vinda da América a uma loja, chegava música vinda da
Europa a outra. Fazíamos um percurso semanal para comprar discos. Era uma busca difícil e
trabalhosa. Agora as coisas estão todas disponíveis. Eu toco um disco que acabei de arranjar e
está alguém a fazer o Shazam e pode fazer logo o download. É mais exigente a esse nível, porque
tens de te reinventar muito mais e fazer um trabalho de busca diferente. Mais ainda continuo a
não conhecer algo com o impacto que a música tem na vida das pessoas. Pode de facto mudar
vidas, abrir consciências.
Já sentiu isso?
Já tive momentos numa pista de dança de pura transcendência, de quase iluminação, em que
sentia que estava a viver dos momentos mais felizes da minha vida. As pessoas, o DJ, a forma
como ele te leva a níveis superiores de consciência, de transe, de hipnotismo, de descargas de
energia a momentos introspetivos e profundos, deep, algumas vezes melancólicos. A forma
como um bom DJ consegue fazer passar essas emoções todas e de uma forma consertada, de
uma forma coerente, conseguindo contar essa tal história, é um bocado o cliché do DJ set
perfeito. Continua a ser única e continuo a não encontra a minha volta algo que consiga ter esse
poder.
É um ouvinte fácil de conquistar na pista?
É difícil, já com tantos anos a ouvir tanta coisa. Tantos DJs incríveis. Não sou propriamente um
público fácil. Mas continuo a gostar de dançar e quando tenho alguém que admiro ou que
mesmo que não admire, que passe a admirar, alguém que me toque pela forma de tocar. Que
arrisque. Que acima de tudo seja personalizado. Que tenha uma luz própria e que consiga passar
essa arte e essa forma de tocar para as pessoas.
Nunca pensou em Produzir?
Seriamente não. Um amigo meu francês que era produtor incentivou-se e cheguei mesmo a
fazer uma música com ele. Várias pessoas me desafiaram para ir para estúdio, mas senti-me
sempre confortável do lado do ouvinte e divulgador. Na altura em que comecei não, mas agora
acho que é difícil um DJ singrar apenas pela arte de tocar discos. Há poucos. Há o Ben UFO por
exemplo que é um dos melhores DJs da atualidade e que não faz música. Mas não me recordo
de assim tantos. Eu venho da geração em que o DJ era um divulgador musical e também um
entertainer, não tinha de ter conhecimentos. Pela música que continua a sair também não
continua a haver conhecimento para fazer música. Há muita música má a sair. Há também muita
excelente. É bom haver essa democratização dos estúdios. Antes só pessoas com contratos de
gravação é que podiam gravar discos. Hoje toda a gente pode fazer música, em qualquer estúdio,
qualquer computador, qualquer Mac e isso é bom. No entanto, há muito lixo sonoro a sair, mas
as pessoas fazem a sua seleção natural. A seleção natural das espécies.
Sentiu que a crise se transportou da indústria da música para a pista?
Acho que a própria música eletrónica também se tornou durante alguns anos menos
interessante. Houve um boom comercial, a seguir a esse boom as coisas ficaram um bocado
“pastilha elástica”, um bocado mais do mesmo com pouca capacidade de se reinventar. A
música ficou chata e as pessoas também se afastaram um pouco dela. A produção e as editoras
não souberam como contornar a situação e culminou num relativo deserto, comparando com o
período florescente inicial ou até mesmo o atual.
Essa fase da música não o fez estagnar?
Não fez. Fez-me arregaçar as mangas e procurar uma saída para aquilo. Fazer algo interessante
com a música que me chegava e que estava a ser produzida. Houve alturas mais difíceis, e
estando eu a tocar todas as semanas num club como o Lux, eu tenho de ter uma grande
capacidade de reinvenção. Mais ainda quando a música que me chegava semanalmente ou que
eu procurava, nessa busca incansável pelo melhor disco para tocar, não me satisfazia e tive de
me mexer. De trabalhar mais, procurar mais e de me adaptar.
Essa exigência toda foi boa para o seu trabalho?
Todas estas experiências, boas ou más, me ajudaram a ser melhor no futuro. Muitas
experiências más são lições para a vida. Nisto que faço então. Todas as noites é um caso
diferente. Nunca posso considerar que uma coisa está garantida, mesmo apesar de tocar há 20
anos no Lux, nunca encaro uma noite como um cenário de favas contadas.
Sente a necessidade constante de se reinventar.
O que faço é noventa por cento de improviso. Há um trabalho de seleção de músicas, mas a
forma como as coisas desenrolam na cabine é improvisado, é do momento. Às vezes há noites
inexplicáveis em que o público parece estar alheio daquilo que fazes. Podes fazer bem, mal,
podes passar música incrível. Não sei se tem a ver com a lua, se tem a ver com uma energia
qualquer. Nunca consegui arranjar uma explicação. Outras vezes, estou cansado porque vim de
viagem e não estou com a energia certa. São muitas as variáveis. Mas uma coisa é certa. Eu
posso fazer uma noite no sábado com um set em que que aquilo sai tudo perfeito e foi incrível
e se eu tenho a péssima ideia de tentar recriar aquilo que fiz noutra noite, noutro contexto, vai
correr sempre mal. Não é assim que as coisas funcionam.
A música tem essa dependência do contexto?
A música, desde sempre, tem a ver com o contexto. Toda a música que foi produzida de
determinada forma por causa do contexto em que ia ser ouvida. A música clássica foi mudando
muito por causa dos sítios onde era ouvida. Era de uma determinada forma quando era tocada
para cortes pequenas e salas pequenas. Tornou-se diferente quando foi para ser ouvida em
grandes catedrais, porque não podia haver grande ritmo, porque o ritmo nas catedrais ressoa e
aquilo fica uma grande amálgama. A música que é produzida a cada época é feita para um
determinado contexto mesmo de escuta, de capacidades técnicas que são oferecidas para os
ouvintes. A música tem de se adaptar e o DJ é a prova final disso. A música que ele toca tem de
alguma forma adaptar-se ao contexto. Se está sol, se não está. Se estás numa praia, ou num
armazém. Se tens um público mais conhecedor ou mais flutuante.
Ainda existe diferenças entre o público dos dois grandes polos urbanos para o resto do país?
Há diferenças, mas já senti mais. Sinto muitas vezes que me divirto muito mais a tocar para
públicos fora de Lisboa e Porto, de províncias, fora dos grandes centros urbanos. São pessoas
mais avidas e mais generosas até para se darem à música. Muitas vezes em Lisboa há muito
público quase blazé que acha que já viu tudo e é pouco impressionável.
Se fosse tocar ao Brasil de Bolsonaro nos próximos tempos ia tentar adaptar o seu set àquele
contexto?
Talvez encontrasse ou me esforçasse para encontrar formas de passar algum tipo de mensagem
mais subversiva. Eu acho que, à semelhança do que fez o Ricardo Villalobos quando tocou o
“Grândola Vila Morena” no Neopop este mesmo ano, acho que deve haver sempre um
apontamento numa noite que reporte para um acontecimento. Fiz isso muitas vezes e se calhar
é uma prática que devia recuperar. É importante haver uma mensagem ou elemento qualquer
que nos ligue à realidade dessa semana. Qualquer coisa que fique nas pessoas e não apenas
uma sucessão de beats.
Por isso é que usa muitas músicas cantadas nos seus sets?
Sempre toquei muitas músicas cantadas. No início dos anos 90 estava toda a gente a tocar
techno e aquele house mais duro europeu e o Frágil era dos últimos redutos onde se ouvia
música de escola mais americana. House com voz, com gospel ou com algum tipo de mensagem,
ou não, mas com voz. E isso sempre fez parte dos meus sets. Nunca preparei um set sem meter
para lá uns chalalás.
Sente-se melhor DJ com os anos? A irreverência dos primeiros anos deu lugar à maturidade?
Eu acho que sim. A minha perceção sobre o trabalho de DJ foi mudando naturalmente ao longo
dos anos. Pertencendo eu a uma primeira fornada de DJ’s, percursores e pioneiros em Portugal
e também a nível mundial, vivi o início de um movimento - a época de ouro dos anos 80 - em
que nasceu o house, a música eletrónica, a pop culture e os clubs como os conhecemos hoje.
Tudo começou nessa altura. Havia poucas referências de pessoas mais velhas quando nós
começámos. Não sabíamos se era o início de qualquer coisa ou se ia durar muito tempo. Eu não
encarava o facto de pôr música à noite como uma profissão muito séria. Era um hobbie, uma
coisa para me divertir, e continuo a fazê-lo.
Como olha para a evolução da música eletrónica de há 30 aos para cá?
Há 30 anos não havia muita gente interessada em música eletrónica. Era um mercado
maioritariamente dominado pelo rock. Não havia grande cultura de música negra de dança, de
soul, de disco. Eram poucos os redutos onde isso se fazia ouvir. Havia um bom programa na
rádio, o “Discoteca”, da Rádio Comercial. Havia discotecas como o Trumps que tocavam muito
boa música de dança negra, mas a esmagadora maioria das pessoas consumiam
maioritariamente rock e não havia muito espaço. O espaço foi se conquistando, foi se ganhando,
de sítios pequenos como o Frágil e, mais tarde, com o Kremlin, ou o Alcântara-Mar. Foi-se
ganhando território. Depois vieram as raves, as grandes festas. Mas longe estaríamos nós de
imaginar que um festival como o Sudoeste fosse dominado como é atualmente pela música
eletrónica, seja ela de que qualidade for. Quem fala do Sudoeste fala de outros grandes festivais
por esse mundo fora.
Esse fenómeno é reflexo da cultura do digital?
Como tudo se tornou mais fácil de obter, mais acessível, naturalmente que isso ajudou a
disseminação e propagação do fenómeno, não tenho dúvidas de isso. Se continuássemos de
volta dos nossos discos de vinil com certeza que o fenómeno teria dimensões mais reduzidas.
Mas não sente que a valorização da componente física da música está a regressar?
Eu nunca deixei de tocar vinil. Nunca deixei de comprar vinil. Mas o regresso que assistimos nos
últimos anos de uma valorização de um DJ que toca vinil e do próprio objeto não me é estranho,
nem espantoso. Sinto uma grande diferença entre tocar uma música em digital ou um vinil. Há
algo de humano que se perdeu nesse processo e que agora se esta a tentar recuperar. Mesmo
para as pessoas que estão a ver, acho muito mais interessante e muito mais sexy, num sentido
figurado. É mais apelativo ver um DJ que está de facto a tocar objetos, vai á mala e tira o disco.
Que faz as coisas em tempo real e com arte, do que tocar discos ou temas pré-sequenciados ou
sequenciados digitalmente. Esta é a minha maneira de vez isto, talvez antiquada, mas talvez
não. Aliás o mercado atual está a dar-me razão por que há de facto um ressurgimento do vinil.
Hoje os discos que andam no Discogs (site de discos em 2 mão) são vendidos a preços absurdos.
Bem como toda a cultura retro.
Sim. Talvez seja um sentimentalismo de ter o objeto outra vez e de manusear uma coisa. Pode
ser apenas uma trend. Mas eu acho que não até porque se tivermos boas condições técnicas
numa cabine de uma discoteca, o som do vinil continua a ser melhor que o som do digital. Agora,
muitas discotecas equiparam-se apenas para tocar cd’s e quando vais tocar vinil aquilo soa mal.
Porque a localização não ficou bem feita. A discoteca não está preparada, o som e a cabine não
estão preparados. Mas quando estão reunidas as condições ideais técnicas, o vinil continua a ter
um som mais quente, menos cansativo ao longo de várias horas. Porque te abrange frequências
mais acima e mais abaixo, ou seja, tens uma gama de frequências muito maior do que no digital,
que é um som muito mais comprimido para o cérebro e para o ouvido humano e isso torna-se
cansativo.
Lisboa pode vir a ser considerada uma capital da música eletrónica daqui a uns anos? Como
Berlim, Detroit, Chicago?
Lisboa já são várias Lisboas. Existe uma grande procura atualmente de estrangeiros para viver
cá. Pessoas ligadas à música, que têm editoras, artistas. Isso pode vir dar um empurrão especial
à cidade. Nós já temos a nossa cena local. A que é mais falada pelos media internacional, a cena
afro techno, com editoras como a Princípe e a Enchufada, que estão a fazer um trabalho único
e extremamente original. Ao mesmo tempo temos a cena de house e techno mais tradicional,
mais clássica, que sempre foi muito forte. Desde o final dos anos 80 que sempre tivemos ótimos
DJs. Durante muito anos investiu-se pouco na produção, que culminou com a crise, onde caímos
num marasmo em termos de produção, de editoras. Agora temos assistido a um boom de gente
nova a criar e a produzir. Tivemos a cena norueguesa, a italiana, mais recentemente a cena
romena. Vamos esperar que chegue a nossa vez. Com todo este melting pot cultural que Lisboa
se tornou, acho que estamos no bom sentido para sermos uma voz ativa, aquilo que não fomos
durante muito tempo.
Como uma pessoa que trabalha muito de noite, consegue ter tempo para a família?
Já vivi mais à noite. Desde sempre que gostei de estar acordado a noite. Mesmo quando
estudava, era à noite que o estudo rendia mais. Eu habituei-me a gostar da noite e a estar no
silencio da noite a estudar. Atualmente e nos últimos anos é uma coisa equilibrada. Tenho uma
filha que faço questão de a levar todos os dias a escola. Equivale a dizer que acordo a um quatro
para as 8. E ao fim de semana viro diametralmente o fuso horário. Mas também trabalho de dia
no Lux, onde faço preparação da programação, duas vezes por semana pelo menos, e a rádio
também é atualmente gravada de dia. Porque sexta e sábado muitas vezes estou a trabalhar e
ainda não tenho o dom da ubiquidade.
Quando chega a casa de madrugada depois de uma noite a pôr música, ainda consegue chegar
feliz?
Ainda há pouco perguntaram à minha namorada “Como é que o teu namorado consegue
aguentar tantos anos? A pôr música, a fazer viagens, para cima e para baixo?” e a resposta dela
foi engraçada - “ele chega sempre feliz”. Não chego sempre feliz, mas dá-me sentido à vida. Dáme sentido aos anos todos que passei a pesquisar, a procurar, a comprar discos. É para isso que
aqui estou.
Entrevista a Rui Vargas, Dj e radialista (2018)
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