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Todas as quartas ela entrava no café depois das três. Despensa N.6 era o espaço. Por vezes atrasava-se. Filipe esperava pelo momento de a ver entrar. “Bom dia! Um capuchinho se faz favor.” Ele sabia se era um dia bom ou mau pela forma como ela pedia o café.

Sentava-se sempre num dos cantos. Não importava qual. Sempre num pequeno canto a observar todo o espaço. As paredes brancas e a estante de madeira, a mesa corrida, ou o sofá de canto, a montra de bolos “saudáveis” como mandam os novos espaços de Lisboa. Tudo ao alcance da sua vista. Da mochila, tirava o pequeno bloco preto, o estojo e olhava à sua volta. Só depois de Filipe lhe levar o pedido à mesa começava a desenhar.

Por vezes quando Filipe ia à mesa ela já tinha aberto o bloco e Filipe conseguia espreitar de socapa algumas das ilustrações feitas. Viu clientes habituais e clientes de uma só vez. Viu a colega de turno desenhada com uma cara franzida. Nunca se viu.

Filipe trocava a hora de almoço para garantir que era ele que a atendia. Quando ela não vinha o seu dia era um pouco mais triste. Atrasava o pedido para poder levá-lo e espreitar o pequeno bloco. Sempre na expectativa de encontrar o seu retrato. Queria ver como ela o via. Se ela o via.

Um dia ela veio acompanhada. Uma outra rapariga. Uma novidade. Uma alteração no comportamento. O que teria levado a tal? Ela era fascinante. Falaram as duas por mais de uma hora antes de ela começar a desenhar. Tatiana. O nome dela era Tatiana.

Ana frequentava aquele café quase numa base diária. Gostava dos bolos, gostava do espaço, ficava à distância certa da sua casa. Não demasiado perto para encontrar vizinhos mas a suficiente para ir a pé. Sentava-se sempre no mesmo lugar de canto. Por vezes levava uma amiga. Por vezes ia sozinha.

Um dia reparou numa rapariga de camisola amarela a desenhar num pequeno bloco. Tentou espreitar, não conseguiu. Foi na semana seguinte que ao entrar no café viu novamente a rapariga da camisola amarela. Ia sozinha e foi-lhe fácil sentar-se ao seu lado. Desta vez ia espreitar o que tinha aquele bloco. Viu uma pequena imagem de um rapaz banana. Sim, um rapaz com cabeça de banana a sorrir. De imediato os seus lábios imitaram a expressão.

.…

Carla tinha acabado de ir buscar Ricardo à creche. Era um daqueles dias. A reunião de três horas que teve no trabalho, a chuva que não parava, a criança com fome. Parou no primeiro café que viu. Tinha de se abrigar, comer e alimentar o pequeno. O único lugar disponível era na mesa onde estava Tatiana. Pediu licença e sentou-se com o filho. Deu as bolachas à criança e começou a comer o seu pão integral.

O menino olhou para o bloco de Tatiana. Viu bonecos. Ele gostava de bonecos. Agora, aquela criança que tinha entrado a chorar estava ali a devorar bolachas focado num pequeno bloco de papel. Carla reparou, e pela primeira vez naquele dia ela respirou. Não que sofresse de apneia, respirou como se deve respirar com os pulmões cheios e a barriga a subir. Sentiu o corpo a relaxar. Ficou sentada mais 15 minutos do que precisava. Estava bem.

...

Todos eles estavam no bloco de Tatiana. Filipe com ar curioso, Ana com o sorriso maroto, Ricardo de bochechas cheias, Carla satisfeita. Nenhum deles o sabia. Tatiana achava-se invisível. Uma mancha na imagem de fundo, blend, despercebida. Ela apenas retratava o que via. Ela não sabia que era tudo menos invisível. Ela não sabia.

Tudo o que tinha visto só era possível por ela lá estar. Todas as expressões que captou foram devido a si. Ela era fascinante. Ela era fascinante para todos os que a observavam. Só ela não sabia. Ela não sabia. Ainda.




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Despensa N.6

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