17h37 foi a última coisa que vi antes do telefone se desligar. O meu peito sobe e desce a um ritmo frenético e sinto o ar a tentar oxigenar o corpo. A minha mão sobe à testa para limpar o suor num movimento automático. Quero parar. Quero tanto parar mas não posso. Odeio correr mas esta não é uma questão de gosto. Tenho de chegar a tempo.
Ainda não decidi o que fazer e honestamente é a última coisa em que quero pensar. Em que me permito pensar. O formigueiro nas coxas aumenta ao mesmo tempo que os gémeos parecem dar de si. Mas não dão e eu continuo. Não sei quanto tempo passou desde que o telefone se desligou. Segundos? Minutos? Sei que parecem horas. Dias. Não posso parar. O pior é o peito. Esta sensação de falta de ar. Merda para os cigarros. Não… O que eu dava para um cigarro agora. Chego a tempo para fumar um cigarro antes de partir? Foda-se! Chego a tempo? Não estou a fazer sentido. Só tenho que lá chegar e depois decido. Foda-se, doem-me os pés!
Continuo a correr. Acho que estou a ir pelo caminho certo. Estou não estou? Conheço estas ruas há 10 anos, a mercearia do Sr. Manel vai aparecer depois daquela esquina. Mesmo assim duvido do caminho. Duvido de tudo. O que estou a fazer? O que vou fazer se chegar lá a tempo? E se não chegar? O que é que estou a fazer? Merda para estes sapatos! Hoje? Hoje de todos os dias decido não usar ténis. Hoje? Hoje não decidi nada. Agora, neste momento estou a evitar uma decisão. Eu sei disso. Eu sei disso enquanto me falta o ar. Podia ter ficado parada. Podia ter apanhado um Uber. Mas comecei a correr. Que estupidez do caralho…
Não sei mesmo o que vou fazer quando lá chegar. Há uma parte de mim que quer chegar atrasada. Ser o universo a decidir por mim. Sinto-me a atrasar o passo enquanto a ideia me passa pela cabeça. Não! Corre e logo se vê. Corre Ana. Corre.
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Há um certo desconforto que nunca passou com os anos. Eu adoro o Porto, a minha casa agora é aqui. Mas há qualquer coisa que me inquieta. Nada de importante. É a ervilha na cama da princesa. Mas ao contrário de uma princesa eu durmo.
“Ana, o que vais querer?” As palavras do Pedro trazem-me à realidade. E quando dou por mim o empregado já está junto da nossa mesa.
Sorrio para o rapaz e espero que ele vire costas antes de continuar a conversa.
Eu não digo nada e ao ver o empregado voltar com as cervejas acendo um cigarro.
Eu ignoro o comentário dele sobre a possibilidade de constituir família. É o que é esperado certo? Oito anos juntos, é o esperado certo? Eu já tenho 37 e não penso deixar o Pedro. Somos bons juntos. Até o conhecer andava perdida no Porto. Foram os piores anos da minha vida. Não foram maus. Sempre tive anos bons, mas aqueles foram os piores. Sozinha a começar tudo do zero.
A oferta da agência era boa demais para recusar. Responsável pelo novo escritório. Era boa demais para recusar. Era. Não podia recusar. Não tinha escolha. E assim de repente a imagem dele a colocar as minhas malas na bagageira do carro com os olhos inchados veio-me à cabeça. Mas era uma oferta boa demais para recusar.
Um silêncio confortável instalou-se na esplanada com vista para o douro. Ali estava ele, o meu Pedro a tentar compreender a minha situação quando eu, realmente, estava a ser uma cabra para ele. Mas as memórias, a minha avó, a luz de Lisboa…
Só saímos do café depois do sol se por. Esta era a minha altura favorita do dia. O sol a pôr-se atrás do Douro. “Ana?” Uma chamada e uma pergunta ao mesmo tempo. Uma voz familiar. Quando me viro, como se tivesse sido chamado pelos meus pensamentos lá estava ele. Era ele. Um sorriso surgiu no seu rosto quando me viu e eu não consegui evitar fazer o mesmo.
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No dia em que a Laura, a minha chefe, me chamou ao escritório dela os nervos apoderaram-se de mim. Ia várias vezes ao escritório dela discutir projectos mas hoje era diferente. Não tínhamos nada pendente e de certa forma eu sabia o que ela queria falar comigo. Eu sabia que merecia uma promoção apesar das minhas inseguranças fazerem com que a minha cabeça passasse imagens dela a criticar o meu trabalho. No momento em que ela disse “Sabes que vamos abrir um escritório no Porto certo?” eu soube o que vinha a seguir.
Quando cheguei a casa o Luís estava a fazer o jantar. Mal passei pela porta ele sabia que algo se passava. Ele sentia a minha energia como ninguém conseguia. Ninguém até à altura. Ao jantar ele abriu uma garrafa especial para celebrar. Aquela garrafa que temos no fundo do armário para abrir quando queremos impressionar algum convidado. Eu contestei mas ele abanou a cabeça enquanto retirava a rolha. “Ana, isto é importante. Tu mereces.” E eu sorri e deixei-o. Não falámos do que iríamos fazer. Devíamos ter falado, mas não falámos. O escritório só iria abrir dentro de meses e teríamos tempo para decidir pensei eu. Ele… Ele evitou o assunto e fez imitações minhas como chefe. Quando nos fomos deitar a urgência dele em estar comigo e a minha com ele prenunciavam o que ai vinha. Mas ninguém falou.
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Merda, devia tê-los apresentado.
O Pedro calado observava a nossa interação. E foi assim que o maior fantasma do meu passado apareceu à minha frente.
No caminho para casa o Pedro não fez perguntas. Ele sabia ler-me e eu não queria responder. Ele conhecia-me tão bem.
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No dia seguinte a ideia do encontro do dia anterior não me saia da cabeça. Dei por mim na minha hora de almoço a vaguear pelas ruas desde os Clérigos à baixa na esperança de voltar a encontrá-lo. À espera de o encontrar. E quando regressei ao escritório uma sensação de decepção tinha-se apoderado sobre mim.
“Hei! Hoje vamos beber um copo?” Grita a Cláudia para mim. A Claúdia era a nossa responsável pelas redes sociais e a única pessoa do escritório com quem eu me dava fora das horas de expediente. Eu acenei com a cabeça e sorri para ela. Um copo parecia-me bem.
Às seis em ponto a cabeça da Cláudia aparece pela porta o meu escritório.
- Pronta?
Vamos ao café do costume. Pelo menos duas vezes por semana vimos beber uma depois do trabalho. A Cláudia é talvez a minha melhor amiga aqui no Porto.
E ali descontraída enquanto contava à Cláudia o meu encontro da noite anterior e depois de uma hora de almoço passada à procura, ele aparece-me à frente. Sem pensar, chamo por ele “Luís!”
E assim fico eu e o Luís sozinhos pela primeira vez em dez anos.
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A conversa passa de constrangedora para natural enquanto o tempo passa. Ele conta-me sobre a reunião que teve hoje durante a tarde. Eu falo do Pedro, ele da ex-namorada que teve depois de mim e da sua paranóia com meias passadas a ferro e rimos. A conversa flui, mas as minhas mãos tremem, um sinal claro de que estou nervosa. Porque é que estou nervosa? Dez anos Ana. Dez anos.
O sol põe-se. Do sítio onde estamos não o vejo a despedir-se mas a luz laranja nas pedras escuras dos prédios acalma-me.
Mais um pouco de conversa e quando dou por mim o sol já se pôs
E assim eu dou-lhe o meu número e despeço-me. A caminho de casa penso na reacção do Pedro quando lhe disser que convidei o mês ex para jantar connosco amanhã.
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Estava tão nervosa quando levei o Luís a conhecer a minha avó. As minhas mãos tremiam durante a viagem de carro. Ao sentir o meu nervosismo ele quebrou o silêncio “Se eu não gostar dela vamos ter de acabar.” Uma tentativa de humor que naquele momento de tensão me fez rir.
Foi num aniversário de um amigo que conheci o Luís. Ele sentou-se à minha frente e durante toda a noite deu-me pontapés involuntários devido ao seu 1.90m. Não me lembro sobre o que falámos. Ele diz que contou a história de quando caiu duma árvore aos 13 anos e que eu me apaixonei por ele nesse instante. Eu não me lembro da história mas aceno em concordância cada vez que ele fala nisso. Sei que acabamos essa noite na minha casa, e no mês seguinte eu mudei-me para casa dele. Com o Luís tudo era intenso, tudo era rápido e parecia demasiado tarde. Tudo menos ele. Que dicotomia. Estar com o Luís era calmo, era certo. Estar com o Luís era tudo, era intenso e todas as fases do nosso relacionamento por muito apressadas que parecessem ao exterior eram tardias para nós.
No dia em que o levei a conhecer a minha avó, tínhamos passado há pouco tempo os dois meses de namoro. Nunca tinha apresentado ninguém à minha avó mas o Luís parecia certo. Ele deu-me a mão antes de entrarmos em casa dela e como eu suspeitava ela adorou-o. Ela contou-lhe histórias embaraçosas minhas e ele ria-se enquanto lhe dava a mão. Este era o efeito dele nas pessoas. Pelo menos em mim e na minha avó. Ele conquistava-nos com os pequenos gestos.
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Quando chegámos à porta do restaurante o Luís já estava à nossa espera. O Pedro, como eu previa não disse nada sobre o facto de eu o ter convidado no dia anterior. O Pedro não era esse tipo de pessoa.
O jantar corre sem grandes dramas. Não sei porquê receava um drama ao jantar. Ou se calhar desejava. A ideia de uma luta de cavaleiros por mim. Merda para os filmes de princesas que nos põem à frente durante a infância.
A resposta do Pedro surpreende-me. Mas não sei bem porquê. Ele é assim, sempre prestável. Sempre um bom anfitrião. Não me devia surpreender. Talvez apenas esperasse um pouco mais de ciúme irracional. Mas ele não é assim. Ele não é impetuoso é carinhoso.
Depois do jantar vamos a um dos bares das galerias beber uma cerveja. Uma cerveja que passa a duas. Duas e a três. Não sei porque temia este jantar. Passaram 10 anos desde que eu e o Luís terminámos, estou com o Pedro há oito. Estamos aqui como pessoas civilizadas e é agradável. Até ao momento em que o Pedro se levanta para ir buscar mais uma ronda ao balcão do outro lado do bar. Nesse momento o Luís levanta a mão e toca com a parte de trás no meu rosto. “Porque é que me deixaste Ana?” De repente sinto um arrepio e as minhas mãos começam rapidamente a tremer.
- Pára com isso Luís!
De repente vejo-o a olhar insistentemente à sua volta e sem eu me aperceber beija-me. Memórias retornam à minha mente já confusa do número de cervejas e eu deixo-me levar por uns momentos até que a imagem do Pedro aparece e eu interrompo o beijo.
Quando o Pedro regressa à mesa eu apenas lhe digo “Depois desta vamos? Estou cansada.” E ele acena com a cabeça como eu sabia que iria fazer.
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O escritório continuava a crescer e dois anos depois de ter chegado ao Porto eu continuava mergulhada no trabalho. A verdade é que a ausência de vida fora do escritório ajudou ao sucesso do mesmo. Custa-me admitir mas é verdade. O crescimento fez com que tivéssemos de aumentar as capacidades dos servidores e procurar alternativas. Foi uma semana de reuniões com todo o tipo de empresas técnicas a apresentar soluções enquanto eu acenava e perguntava sobre os custos de manutenção. Não percebia nada das questões técnicas mas ninguém tinha de saber isso. Na quarta-feira dessa semana, uma das reuniões que tinha não apareceu. Quando me preparo para sair do escritório aparece-me o Pedro exasperado à porta. Ele era a minha reunião que não apareceu. Eu fiz-lhe a minha cara de má e fiz-lhe ver que eu era o cliente e era inadmissível ele não dar resposta aos seus clientes. Ele olhou para mim, pediu-me uma oportunidade para se explicar e oferecer-me o jantar. Não sei o que me fez dizer que sim, mas disse. E foi a única fez que o Pedro se atrasou comigo.
Ele não era o oposto do Luís mas era diferente o suficiente para não mo lembrar. Era carinhoso e atencioso. Era ponderado e fazia-me sentir a pessoa mais especial da sala. Apaixonei-me por ele no dia em que acordei no quarto dele e ele me trouxe um croissant da Chicana com uma caneca de café. Ali naquele momento, eu vi o homem que sabia que eu adorava aqueles croissants e os tinha preparados para mim.
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Uma semana antes da minha viagem para o Porto eu e o Luís ainda não tínhamos decidido nada. Esperei sentada no sofá até que ele chegasse a casa. Tínhamos que falar. Em menos de uma semana eu ia morar noutra cidade e sempre que eu tentava discutir a logística ele mudava de assunto, ele puxava-me para o quarto, ou tinha que fazer uma chamada urgente. Era hoje!
Quando ele chegou a casa percebeu de imediato o que se iria passar. Nunca ninguém leu assim a minha energia. Puxou uma cadeira da mesa de jantar e sentou-se à minha frente, como que a evitar partilhar o espaço do sofá comigo.
Foi assim que o Luís terminou a nossa relação. Tão rápido como começou. Ele não ia mudar-se para o Porto e não me ia privar da oportunidade. Também não ia fazer o esforço e conhecendo-o também não ia valer a pena.
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Foda-se falta-me o ar! Já não sinto as pernas. O formigueiro nas coxas ainda continua mas a dor nos gémeos parou. O suor continua a escorrer pela minha testa e sinto o frio do vento contra a minha camisola encharcada de transpiração. Falta-me o ar mas ao fundo vejo a estação. Foda-se parece que estou a correr a maratona. Que horas são? Não consigo perceber. Foda-se!
Ok… estou cá… relógio? 17h41 Foda-se! Cheguei a tempo! Foda-se… Cheguei a tempo? No placar vejo que o intercidades vai sair da plataforma 3 e sem pensar muito nisso dirijo-me a ela. Quando subo as escadas de acesso ali está ele. A aproveitar os últimos minutos antes de partir para acabar o cigarro. Foda-se como eu queria um cigarro agora. Mesmo a arfar, suada e com as pernas a tremer o que eu dava por um cigarro agora. Mas não há tempo.
É agora. É agora que tenho de tomar uma decisão. Não fui eu que decidi vir para o Porto. Não fui eu que decidi deixar o Luís em Lisboa. Não fui eu que decidi beijá-lo ontem à noite. Não fui eu. Agora sou eu. A olhar para ele enquanto dá as últimas passas no cigarro vejo que nunca decidi. Até agora. Abro a mala e tiro um cigarro. Acendo-o e viro costas.
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